Atelier

Textos de Emília Tavares

Um atelier fotográfico no século XIX

Através da arquitetura existente, e das muitas obras técnicas de referência sobre o funcionamento dos ateliers fotográficos no século XIX, é possível reconstituir alguns dos aspetos centrais ao seu buliçoso funcionamento. O atelier Vicente’s, sendo um dos estúdios mais antigos e mais bem apetrechados da época permite realizar uma reconstituição daquilo que seriam, no essencial, muitos dos estúdios congéneres. Um dos primeiros aspetos, comuns à maioria dos ateliers do século XIX, é a orientação do estúdio relativamente à entrada de luz natural, uma vez que estes primeiros estúdios são anteriores à eletricidade e ao seu uso como fonte de luz e de energia. A orientação a norte das clarabóias era a garantia de uma entrada de luz não direta, ténue e homogénea, permitindo até a sua regulação através de sistemas de cortinas. Por outro lado, dado que nos primeiros processos fotográficos a reprodução das imagens era efetuada por contacto com a luz solar, era essencial uma área técnica envidraçada, como a que observamos aqui no atelier, contígua ao “palco do estúdio”. O cerne do estúdio, onde se realizava o retrato, caracterizava-se pela sua versatilidade, tanto na mudança de cenários, como no mobiliário e acessórios disponíveis para cada tipo de pose. Grande parte do sucesso comercial dos estúdios dependia da variedade e qualidade dos cenários de fundo e dos adereços que ofereciam aos seus clientes, mediante um catálogo de poses, de contextos e de opções de apresentação ou acabamentos, disponíveis para escolha. No caso do estúdio Vicente’s, existe ainda um conjunto notável de mobiliário e de adereços de época, assim como de máquinas de laboratório e de instrumentos de acabamentos. Outra área de grande importância, onde se exibia a grandiosidade e sucesso dos estúdios era a antecâmara de receção, tal como a que existe no atelier, onde tinha lugar um primeiro contacto dos clientes com o catálogo de trabalhos oferecidos, através da consulta de álbuns e da visualização de tipos de retratos. As câmaras escuras, tal como existem hoje, terão sido adaptadas ao longo das décadas, de acordo com a própria evolução dos processos fotográficos que exigiam já outro tipo de áreas técnicas, nomeadamente a adaptação ao processo de gelatina e sais de prata, mais recente. Alguns estúdios fotográficos não se dedicavam apenas ao género do retrato, sendo comum existir também a venda de fotografias de paisagem, inclusive panoramas, que compunham dessa forma o portfólio do estúdio. Como é o caso do atelier Vicente’s que, num folheto de publicidade (em francês) dos seus trabalhos, anunciava a venda de “Vistas da Madeira dos pontos mais famosos”.

Reconstituição de uma sala de laboratório fotográfico no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, 2019 (Fotografia de Marco Gonçalves)

No caso do estúdio Vicente’s, existe ainda um conjunto notável de mobiliário e de adereços de época, assim como de máquinas de laboratório e de instrumentos de acabamentos. 

Um atelier familiar de prestígio internacional

Vicente Gomes da Silva Sem Título (Autorretrato (?) de Vicente Gomes da Silva) 1856 No verso da moldura tem o seguinte texto manuscrito: “Nasceu em 12 de Março 1827. Retrato de Vicente Gomes da Silva, Natural de Santa Maria Maior do Funchal, tirado em 1856, tendo de idade 29 annos; filho legítimo de Domingos Gomes da Silva e de Maria Joaquina da Silva; aquele natural de S.Pedro e esta de Santa Maria Maior. Este retrato foi tirado pelo retratado, nos seus primeiros ensaios em photographia no anno da última peste – cholera – na Madeira morando então à rua de João Tavira, na casa de 3 andares, dita do Sargento. Aos 56 annos de idade, re-enquadrou este retrato em 24 de Novembro 1883, vivendo na [sua] propriedade à Carreira Funchal”.

O Atelier Vicente’s, constitui um exemplo raro e singular, no contexto do património fotográfico nacional e internacional, por duas razões principais: a sobrevivência de um atelier fotográfico oitocentista até à contemporaneidade e a longevidade da sua atividade (1863–1978), sempre no seio da mesma família. O primeiro fundador do atelier, Vicente Gomes da Silva (1827–1906), era uma personalidade criativa e fascinada pelas novidades técnicas do seu tempo. A sua apetência pelo desenho, pela escultura, pela marcenaria e pela fundição, traduz não apenas as suas apetências e qualidades artísticas e a sua personalidade criativa como, de forma consequente, explicam como a radical novidade que a fotografia propunha ia de encontro aos seus vastos interesses. Muito embora o próprio Vicente Gomes Silva date o início da sua prática fotográfica em 1856, e seja referido como um “amador” da arte fotográfica em 1859 (O Direito, 4 de Junho), o seu primeiro estúdio comercial data de 1863 (Rua da Ponte Nova), e a mudança definitiva para as instalações do atual Museu, datam de 1865. No estádio atual da investigação, as fontes são parcas quanto a outros fotógrafos ativos na ilha da Madeira, pelo menos de forma instalada e continuada. Nesta circunstância, podemos considerar como pioneiros na atividade comercial fotográfica na Madeira este estúdio e, com igual importância, o desaparecido estúdio de João Francisco Camacho. O pioneirismo de Vicente Gomes Silva foi determinante, não só pelo importante papel que veio a desempenhar, mas também pela relevância nacional e internacional que lhe seria reconhecida pelos seus ilustres clientes. Em 1866, é-lhe atribuído o título de fotógrafo da Imperatriz da Áustria e ao seu filho Vicente Gomes da Silva, Júnior (1857–1933), em 1903, o de fotógrafo da Casa Real Portuguesa. Ambas as distinções eram comuns, no contexto dos ateliers fotográficos de maior sucesso comercial, traduzindo o reconhecimento da qualidade do seu trabalho, proporcionando um acréscimo de prestígio ao seu portfólio. As gerações seguintes teriam um papel de renovação, acompanhando os desenvolvimentos técnicos e estéticos da fotografia. Vicente Gomes Silva, Júnior seria responsável pela primeira grande alteração do estúdio, modernizando-o e preparando-o para as mudanças do final do século XIX. Já no dealbar do século XX, o seu filho Vicente Ângelo Gomes da Silva (1881–1954) consolidou a Photographia Vicente, a que se juntariam depois os seus dois filhos, Vicente Bettencourt Gomes da Silva (1902– 1960), entre 1930 e 1960, e finalmente Jorge Bettencourt Gomes da Silva (1913–2008), que geriu o estúdio até 1972. Vendido a uma sociedade em 1972, o estúdio encerraria definitivamente em 1978, seguindo-se a compra pelo Governo Regional do edifício e espólio e a abertura como museu em 1982. A popularidade e o prestígio do Atelier bem como a sua ininterrupta pertença à mesma família foram determinantes para a sua longevidade comercial, para a preservação do trabalho fotográfico desenvolvido ao longo de décadas e, finalmente, para o legado do presente Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s. 

Photographia Vicente Sem Título (Aspeto geral do estúdio na rua da Carreira, Funchal) (1913)

Câmara de Estudio —

 Máquina fotográfica de atelier construída em 1885 por Vicente Gomes da Silva, Júnior (1857-1933), com tripé incorporado.

Mostruário —

Mostruário em mogno, que exibe 65 positivos  da Photographia Vicente, captados entre 1890 e 1925, distribuídos por oito folhas em madeira .

Lanterna Mágica —

Lanterna Mágia Aubert, Rainurée. Fabricante Louis Aubert, modelo dito de Lampascope c. 1880.

 

MFM — AV, inv.014 A VIC
MFM — AV, inv. 127 VIC
MFM — AV, inv. 001 MVIC

O palco da imagem

Num estúdio de retrato, a importância dos cenários e do mobiliário era fundamental para a recriação de um ambiente ao gosto burguês. Os cenários constituíam uma parte fundamental na criação de efeitos de trompe-l’oeil, em que motivos paisagísticos românticos e interiores burgueses eram conciliados com motivos arquitetónicos de inspiração neo-clássica. Na documentação do atelier, existem uma série de catálogos e correspondência com a firma Pemberton Bros., em Inglaterra, para a encomenda de diversos fundos de cenários, que se apresentavam como os únicos a fornecer este tipo de adereço em material à prova de água, publicitando também “Fundos Aristocráticos da mais alta qualidade”, entre outras qualidades artísticas. Procedeu-se para a reabertura do Museu, ao restauro de vários cenários, sendo um deles identificado como procedente da firma referida (inv. MIM 193), estando assinalado pelo atelier no referido catálogo, muitos outros terão sido certamente repintados. Destaque ainda para o fundo pintado por Luís Bernes, que se notabilizaria por ter sido o fundo em que posaram os aviadores Gago Coutinho, Sacadura Cabral e a sua comitiva. O mobiliário, por seu turno, tinha uma função técnica, enquanto apoio às poses dos retratados, já que o tempo de exposição do colódio húmido era de cerca 30 segundos, o que obrigava a uma pose estática que podia ser desconfortável e até complicada de obter, sobretudo nos retratos de crianças. Por essa razão, outros acessórios como uma cadeira de suporte para crianças, ou pontos de fixação do olhar como o tripé com imagem, eram fundamentais para auxiliar tecnicamente a realização da fotografia. No processo anterior do daguerreótipo, em que os tempos de pose podiam chegar aos minutos, eram utilizados dispositivos mais complexos. Outra função do mobiliário, era a de recriar os ambientes de gosto burguês, através de uma nomenclatura de peças mais ou menos constante que variava entre a balaustrada, a coluna e a cadeira. Outros elementos adicionais como vasos com plantas naturais, instrumentos óticos e fotográficos ou brinquedos, no caso das crianças, ajudavam a compor a imagem final. 

Interior do atelier do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, 2019 (Fotografia de Marco Gonçalves)

O Retrato Fotográfico: Entre Comércio e Arte 

O período áureo dos estúdios acompanha o rápido desenvolvimento da fotografia e atravessa vários processos fotográficos, desde o daguerreótipo (1839–1851) e colódio húmido (1851–1880) até à gelatina e sais de prata (1880–meados do século XX). Logo após a invenção do daguerreótipo (1839), o sucesso do retrato fotográfico foi exponencial, constituindo-se como uma das indústrias técnicas mais relevantes da segunda metade do século XIX. Entre 1840 e 1851, os estúdios fotográficos dedicados ao retrato, ainda em daguerreótipo, floresceram por todo o mundo; em 1851, a partir de França, foram comercializadas cerca de 7 milhões de placas destinadas ao funcionamento de milhões de estúdios fotográficos. O daguerreótipo, apesar do seu enorme sucesso, era uma imagem única e dependia de longos tempos de pose (de vários minutos), o que veio a determinar a sua substituição pelo processo do colódio húmido (1851), que permitia a sua reprodução massiva e encurtava de forma significativa os tempos de pose. Esta redução do tempo de pose foi determinante para a evolução do género, ao mesmo tempo que condicionou alguns aspetos da sua estética, já que muitos dos adereços e mobiliário utilizados até aí tinham também uma função prática: funcionavam como um apoio durante o tempo de pose, evitando que os retratados se movessem e provocassem assim a desfocagem das imagens. Os estúdios ofereciam um extenso catálogo de formatos de retratos, normalizados a nível mundial, com base no formato carte de visite e em outros de maior dimensão. Os preços, cada vez mais acessíveis, contribuíam para a democratização do género à medida que a evolução técnica permitiu também diminuir os custos de produção e massificar a oferta — sobretudo depois da invenção do processo da carte de visite. Em 1890, uma dúzia de carte de visite custava 3$500 réis, preço a que podiam já aceder as classes operárias e não apenas a burguesia abastada. O retrato fotográfico inaugurou uma iconografia social estereotipada, própria da sociedade industrializada do século XIX, já que os estúdios adotaram um léxico de poses e cenários que era mais ou menos comum. Assim, os aspetos técnicos e estéticos da representação sofreram uma massificação independentemente da classe social do retratado. Por outro lado, a fotografia passou a ter um importante papel na questão da identidade criminal, definindo novas aplicações do retrato. A rutura e a novidade imposta pelo retrato fotográfico na sociedade oitocentista, criou paradoxos próprios fruto do complexo compromisso entre comércio e arte operado pela fotografia. Neste contexto vertiginoso de industrialização e massificação, muitos fotógrafos reivindicariam a fratura com os estúdios comerciais, advogando uma prática artística e amadora contra o comércio instituído da imagem. 

A Fotografia e a Massificação da Imagem – A “carte de visite” 

Em 1854, o fotógrafo Eugène Disdéri revolucionou o já importante comércio dos estúdios fotográficos ao inventar um processo que permitia, numa só sessão fotográfica e numa chapa de vidro de 18 × 24 cm, a captação de 4, 6, 8 ou 12 imagens – a designada carte de visite. Este processo era coadjuvado pelas máquinas fotográficas com objetivas múltiplas, permitindo deste modo num só click a obtenção de um número significativo de cópias do mesmo retrato, tornando o seu custo mais baixo e o seu coeficiente de produção mais eficaz. A carte de visite é uma albumina, processo positivo a partir do colódio húmido, e constituiu um importante desenvolvimento no contexto dos muitos melhoramentos deste processo. Sendo o processo do colódio húmido e a positivação deste negativo em albumina obtido por contacto solar, pelo menos até à utilização de ampliações através de outras fontes de luz, como o magnésio ou a luz de carboreto, a possibilidade de num só negativo produzir até 12 imagens, encurtava em muito o tempo de laboratório necessário para a obtenção da imagem final. Adicionalmente, o sucesso deste processo deveu-se igualmente à função social que este tipo de retrato viria a desempenhar, já que o seu formato cumpriria, a partir de então, o propósito de um cartão de visita com imagem, algo que constituía uma novidade técnica de relevo na sociedade oitocentista. Assiste-se, então, ao desenvolvimento de uma cultura massificada da representação individual, através da fotografia, a que os novos meios de comunicação de massas, no dealbar do século XX, darão novo contexto. Surge também, através da imagem fotográfica e em especial deste processo, o conceito de imagem pública, que se estenderá a vários sectores da sociedade, desde o mundo artístico até à imagem dos políticos e das personalidades sociais. Torna-se comum a compilação de álbuns fotográficos, com propósitos familiares ou apenas de entretenimento, que reuniam coleções de retratos de personalidades de vários quadrantes, maioritariamente utilizando o formato em carte de visite ou o formato acima, designado de carte cabinet ou cartão álbum. 

Álbum Mikado de Carte de visite (1860-1870), MFM-AV, inv. 799 VIC